terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

B.D. de Bom-Dia ...

... Engraçado como as coisas são cíclicas ... 

...em criança tinha um ávido gosto pelos almanaques da Disney, tio Patinhas, Pato Donald, rato Mickey e claro o meu favorito, o Pateta, foram os meus primeiros embaixadores da arte dos "quadradinhos"... 


... todas as semanas o meu pai comprava-me um "livrinho", era o ritual das 6ª feiras... que começava logo quando a minha mãe depois do trabalho me ia  buscar ao colégio por volta das 17h, por entre brincadeiras, conversas e alguns discos rapidamente chegávamos os dois ás 20h ... nessa altura começava-se já a sentir o calor da cozinha e o cheirinho do jantar... esses primeiros 30m das 20h de 6ª feira eram dos que mais me custavam a passar, inquieto o meu trajeto caseiro não perdia de vista a porta de entrada de casa e a janela da cozinha, por onde amiúde espreitava na esperança de vislumbrar a silhueta paternal ... todos os dias chegada a hora, ficava atento á sua chegada, mas em nenhum outro o tempo custava tanto a passar como nas 6ª feiras ... O som da chave do lado de fora da porta, chamava-me rapidamente até ela, ficava petrificado vendo-a trazer o meu pai depois de um dia de trabalho, o ultimo da semana... o primeiro contacto era o da face fria de meu pai na minha, num olá fraternal, seguia-se a minha mãe antes ainda de ele poisar a mala ... Já tinha chegado! Já estávamos todos juntos, em casa ... e eu contente ... ele pousava a mala, tirava o casaco, arrumava-o e ia refrescar-se no quarto de banho ... Eu ainda que à distancia, controlava seus movimentos ... na espera que me chamasse ... "Rucaaa... chega aqui ao pai." Invariavelmente estava sentado do seu lado da cama, baixava-se ligeiramente, abria a mala e tirava de lá o meu "livrinho", explicava-me a sua escolha e entregava-mo, eu esticava-me e retribuía com um beijinho e um obrigado ... corria para a sala para vê-lo e desfolhá-lo ... ás vezes para além do livrinho tinha a surpresa de vir também um "calquito" (para calcar anarquicamente numa folha de cenário) ... era esfuziante...


Com o tempo ... os personagens Disney passaram a partilhar o protagonismo com outros astros do mundo das “tirinhas” como Asterix & Obelix, Tim Tim, Lucky Luke, que me chegavam por via da assinatura do Circulo dos Leitores, tinham o “ar” de livros para crianças “mais grandes”, tinham respeitosamente uma capa dura e um formato perto do A4 ... bem diferentes dos pequenos almanaques de capa fina e bem dobráveis ... rapidamente Patinhas & família passaram a ser coisas de criancinhas ... e mais à frente a entrada no ciclo preparatório impunha, logicamente, o interesse pelos Super-Heróis ... Super-Homem, Homem-Aranha, Mandraque ... os “livrinhos” passaram a chamar-se os “Marvel” até parecia nome técnico, coisa de pré-homenzinhos ... as histórias tinham acção, tímidos romances, repletos de emoções mais complexas e teorias mais repescadas; como poderia um miúdo da primária ter a inteligência para perceber que um humano subitamente ganhasse poderes incríveis e os usasse na missão de salvar o mundo? Impossível! Só um rapaz quase pré-homem teria essa sapiência ... os “putos” não chegavam lá...


... e pronto a minha sã e adorada  convivência com a banda desenhada ficou-se (durante muitos anos) por aqui, pelos tempos do ciclo preparatório ... passou de tão impregnada que estava no meu quotidiano para um súbito e desprezado desinteresse ... assim que dei conta de que os ”livros de bonecos em tiras” eram um dos bens mais apetecidos na feira da ladra ... a minha gigante colecção de “livrinhos” passou rapidamente a mera recordação ... vendiam-se como “pãozinhos quentes” ... das vezes que de madrugada fui pela mão do meu primo (que ia vender por trocos, roupas antigas e bugigangas inúteis), ainda nem tínhamos encontrado sitio para assentar, o sol ainda raiava baixinho e já tinhas os escudos no bolso e os sacos vazios ... quando dei conta disso, que com os trocos que fazia com os “quadradinhos” podia, logo ali comprar e regressar a casa com cds de bandas que só eu gostava e só na feira da ladra encontrava ... fez-se luz, fez-se música ...

... até que há poucos meses, numa conversa ocasional acerca de design gráfico, menciono o nomes de Chris Ware e Tomine como dois dos meus designers gráficos favoritos e o quanto eu aprecio as suas ilustrações, o traço "limpo" de Ware e quanto significativas são as suas míticas capas de Tomine para o The New Yorker ... e uma revelação é me feita ... ambos têm obras de banda desenhada publicadas ... Chris Ware inclusive é autor daquela que é por muitos é considerada a melhor "Graphic Novel" de sempre, "Jim Corrigan - the Smartest Kid on Earth" ...
 Subitamente, eu que tinha deixado a banda desenhada "enterrada" hà décadas atrás, vi-me novamente entusiasmado com o género ... paulatinamente fui deixando cair o "cliché" estigmatizado de que banda desenhada ... são bonecos para "miudagem" ... e descobri o "Graphic Novel", a dita banda desenhada para adultos ... que alia pequenas obras de arte gráficas com histórias de enredos densos, tantas vezes espelhos do nosso mais intimo quotidiano ...
 

Não podia ter encontrado melhor forma de reentrar no mundo dos "quadrinhos" do que com um emprestado "Jim Corrigan" de Ware, fiquei deslumbrado, não só pela beleza das ilustrações (verdadeiras minuciosas obras-primas) como pela carga emocional da personagem ... isto não é mesmo para meninos !... 
... entusiasmado não perdi tempo e adquiri "Building Stories" a nova Graphic Novel de Chris Ware editada em 2012 e que figura em quase todas as listas internacionais de melhores livros do ano ... e este é um bom exemplo do que se pode esperar de um artista gráfico  tudo nesta edição é pormenor, na forma, no contexto, na narrativa ... nada é deixado ao acaso, num deslumbrante dançar entre imagem e palavra ... simplesmente absorvente ...

no entanto o meio das letras demorou a aceitar e enquadrar este tipo de banda-desenhada [graphic novel] como um género literário, ainda continua a ser um assunto sem consenso, no entanto várias destas obras foram já nomeadas para inúmeros prémios literários, tendo inclusive "Maus" de Art Spiegelman ganho o prémio Pulitzer...

Como apreciador de tudo quanto considero arte, apaixonado pelo pormenor do design e da imagem como forma de expressão ... não poderia estar mais rendido, a este sentido de arte ... é fácil "perdermo-nos" ora na beleza das palavras, ora na das ilustrações, e a cada reler encontramos revelações ... num extasiante deslumbramento ...

... de forma, estilo, motivação  e absorção bem diferentes ... a verdade é que a banda desenhada "regressou-me"...

bem-hajas